sexta-feira, 12 de setembro de 2008

A paixão abortada e incomodamente não cicatrizada

Nunca pensou que pudesse voltar de uma viagem de negócios com a sensação de “momento perdido que não volta mais”. Não foi um trabalho fora da cidade típico. A chefe milagrosa e inexplicavelmente deixou a passagem de retorno em aberto e deu a idéia de passar um fim de semana nesse município litorâneo que não conhecia, pois o que precisava fazer aconteceria numa sexta. Também não tinha verba adicional para viagens surpresa muito bem vindas e por outro desses motivos que a razão não alcança, a mãe emprestou grana a fundo perdido, mesmo tendo em seu imaginário a região como perigosa. Como não havia conseguido fazer mochilão europeu dos seus sonhos e já tinha escrito sobre albergues da juventude sem conhecê-los, achou que já não era sem tempo um test drive que a colocasse em contato com culturas do mundo todo sem sair do Pais, já que os gringos são mais habituados a esse tipo de viagem.
Não viajou com segundas intenções. Era ainda a época em que a lua de mel se prorrogava em casa. Mas tinha tamanha paixão e saudade do mar, que não se privou de dois dias caminhando na areia, mesmo sem a companhia dele. Traria lembrancinhas do tipo “Fui para o cafundó e lembrei de você”. E a vida e o relacionamento continuariam com seu curso normal, sem sobressaltos. Ao menos era o que imaginava ao embarcar. E é quando menos se espera que Deus comprova seu incrível senso de humor negro.
O trabalho correu bem, todos com os quais teve que lidar foram tranqüilos, ligou para a empresa quando terminou, relatou o serviço e desejaram “boa praia”, quase como prêmio pela missão cumprida.
No albergue, ao deixar as suas malas e pertences no armário, conheceu a companheira de quarto, que tinha forte sotaque do sul. Trocaram informações básicas sobre profissões, estado civil, tempo de estadia, preferências para se divertir. A colega tinha sono, descansaria um pouco mais. Ela estava em polvorosa e desceu para a área de convivência.
Judeus, americanos, ingleses, conheceu um pouco de tudo. Se espantou com o quanto eles vêm passar um período curto, se apaixonam pelo País e começam a pesquisar algum negócio para ficarem de vez. Brinca que como não conhece compatriota que goste do Brasil, vê as qualidades e defeitos “de sua terra” de outra forma ao trocar impressões com colegas de tantas nacionalidades.
Conheceu uma alemã típica, loirinha, olhos azuis, até mais simpática do que imaginou para alguém de um País que imaginava como mais frio. O colega dela se aproximou e... Ela foi incapaz de entender seu nome, não sabia se por ser difícil ou por ele a deixar com os sentidos completamente desnorteados.
Jamais imaginaria um alemão moreno, de olhos e cabelos escuros. Soube que era descendente de turcos e que esse país tinha relações comerciais e históricas muito próximas com a Alemanha. Era médico. Admirava tanto as profissões de saúde! Ouviu encantada ele explicar que faria uma residência num dos maiores hospitais brasileiros, que não tinha leitos suficientes para todos os pacientes que recebia e entendeu quando explicou que depois dessa experiência, tiraria de letra os centro de saúde alemães, que sempre dão conta de seus doentes.
Se sentia de volta à “aborrescência” ao ter a impressão de que borboletas revoavam em seu estômago. Passearam com outros colegas pela praia e as afinidades começaram a deixá-la mais sem chão. Nunca acreditou quando a amiga contou que quando conheceu “o homem de sua vida”, ele já tinha outra “mulher da vida dele”. Sempre brincou que no máximo havia “o homem de nossas vidas da semana passada”, mas quando mencionou a paixão por poesias e iniciou um poema, que ele completou e era de Rainer Maria Rilke, desejou que os demais colegas de hospedagem desintegrassem naquele instante. Não sabia se ficava mais sem jeito por não conseguir camuflar um sentimento que tinha esquecido em algum limbo da acomodação amorosa ou pelos demais colegas saberem que era casada. Desejou que seu estado civil não viesse à tona, quase fez promessa para isso. Os dois também amavam teatro, meditação, viagens, massagem, técnicas de auto conhecimento e aprimoramento pessoal... A voz dele ia e vinha, como se seu ouvido se recusasse a trabalhar conforme ele a arrebatava. Quando o assunto acabava, não ficavam sem graça, os olhares, toques sutis, mas pulsando toda a energia do mundo e as intenções inconfessas preenchiam todo o silêncio, nada constrangedor. A noite parecia ter se multiplicado em horas que não tinham mais fim e desejou que a manhã nunca chegasse, que o retorno não viesse, que ele a chamasse para largar tudo e correr o mundo, sem parada certa, sem segurança alguma, sem a rotina que tanto a oprimia. Esqueceu que tinham platéia, mas foi incapaz de demonstrar o quanto aquilo era raro, especial, relevante, único... Era muito mais desconcertante que suas paixões juvenis, era muito mais intenso que o amor companheiro morno do cotidiano, que o dia a dia insistia em massacrar. Parecia que voltava para uma casa nova, inacreditavelmente familiar. Era lugar comum dizer que nunca tinha sentido aquilo, mas não conseguiria definir, descrever, nomear, classificar, racionalizar, entender... E ao mesmo tempo, era como se tivesse esperado a vida inteira por aquilo, como se só tivesse nascido para passar por aquele momento. Tudo indicava ser um encontro de almas mesmo, desses que ela, cuja praticidade quase masculina causava espanto às amigas, nunca acreditou. Um começava uma frase, o outro completava. Não podiam se encostar, pois era como se desse choque, se as luzes se apagassem e ousassem se beijar, brilhariam no escuro. Cochichos. Risos furtivos. Rubor fora de hora. Dançaram à beira do mar. Tomaram água de coco como se não fosse madrugada. Relembraram a infância e riram sem motivo, como se de fato tivessem voltado à ela. Sentiram saudade de amigos, familiares. Escreveram na areia. Contaram as estrelas. Ficaram sem voz quando prestaram atenção ao quanto a lua estava linda. Trechos de peças eram contados, rememorados, vividos novamente, compartilhados. Ela aprendeu um pouco de uma nova área com ele, que também se embrenhava no campo nada familiar no qual ela atuava. Confessaram segredos. Ousaram dizer os medos em voz alta. Choraram traumas. Ouviram o mar. Às vezes os colegas pareciam tantos ao redor, uma platéia insuportável, testemunhas constrangedoras e em outras ocasiões era como se embotassem, sumissem e o cenário, o figurino, os companheiros de cena se distanciassem, tudo se apagasse e só olhar brilhante dele preenchesse todo aquele instante, o espaço, os sons. Foram cúmplices. Criaram um verso, uma cena, uma música, uma estratégia de fuga, uma viagem futura, sentiram como se suas energias não quisessem mais se separam e perderam a voz. O público invadiu a cena. A colega de quarto contou que era casada. Soube que ele era mulçumano e eles têm uma parcimônia com as mulheres comprometidas que as demais religiões e culturas não conseguem entender. O tempo, as dificuldades, o cansaço, os empecilhos, o ruído, as influências externas voltaram. Os olhos encheram d´água. O fim de semana voou. Ela passou dois dias sentada à beira mar sem ar, sem entender, sem raciocinar, sem se reencontrar, sem se mover, sem jeito, sem graça, sem chão. Voltou para casa constrangida como se o aeroporto, o taxista, a rua, a vizinhança, a família e o próprio marido percebessem sem que falasse nada o encontro que abalara suas estruturas. Não ousou dividir o que parecia um misto de sonho e pesadelo. Era como se houvesse uma traição consumada, ainda que no máximo tenham vindo à tona somente intenções. Sempre dizia que não trairia pois continuar comprometida seria manter uma mentira. Descobriu que fingir que não tinha tido uma vontade quase irrefreável também era a manutenção de um engodo mútuo. Que os pensamentos, palavras, toques inocentes atestaram que seu amor inabalável começava a se decompor. Era como ter um morto aos pés e fazer de conta que tudo continuava na mesma. Apesar do quanto estava perturbada, fazer o amor tão familiar foi gostoso como nunca. Achou que passar vontade podia requentar o relacionamento meio insosso. Nunca digeriu bem aquele mal estar, aquela sensação de momento perdido que não volta nunca mais. Procurou o turco pelo Orkut, no hospital onde faria sua residência, na lista telefônica, sussurrou aquele nome ininteligível baixinho, quase como uma prece, um desejo, um pedido, uma esperança. Entendeu quando lembro do antigo professor de literatura, que decretava: o que não tinha acontecido, o platônico, era mais forte que o consumado. Levou ainda anos para compreender que aquele tinha sido o início do fim. O estopim de vontades inconfessas, de problemas que iam para baixo do tapete, de não se acostumar ao todo dia igual. O casamento acabou, não por causa desse abalo quase insignificante na prática, mas arrasador emocionalmente. Viveu novos namoros, amigos coloridos, mas anos depois ainda tentava não se incomodar com aquela sensação de que ninguém valia um momento perdido que não volta mais. E deixava falando sozinha aquela vontade sem lógica de encontra-lo inesperada e surpreendentemente, na metrópole que tragava quase tudo e todos. Um pouco por isso, um pouco pelo tanto que tentou sufocar a libertária que vinha à tona, adotou como filosofia de vida que as vontades que quase nos matavam, tinham que ser mortas antes.

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